Ferrugem Revisitado

A envolvência rural da pequena aldeia minhota de Portela parece contrastar com a sofisticação da experiência que estamos prestes a viver, mas na realidade, tudo não passa de um complemento. O cheiro da natureza, que se mistura com o fumo das lareiras, as vozes e os costumes dos seus habitantes e o contexto agrícola onde se insere, não são mais do que uma introdução para o que se segue. É como se o Ferrugem não fizesse sentido noutro terroir.

Cruzar a porta do Ferrugem é entrar numa realidade paralela daquela aldeia minhota, em que tudo faz sentido, numa simbiose perfeita entre a ruralidade de uma e a modernidade de outra. O chão de calçada portuguesa e as paredes de pedra envolvem um mundo quase encantado, qual toca de coelho, onde a alma de ser minhoto (e português) é elevada como em nenhum outro restaurante que conheço. Em vez da Alice, do Chapeleiro Louco ou do Coelho Branco, temos outros protagonistas, também eles dignos do nosso imaginário. O Pão de Ameixa com Bacon, a Manteiga de Azeite, o Caldo Verde, o Chupa-chupa de Polvo, o Carpaccio de Bacalhau, a Mousse de Abade Priscos, que apesar dos nomes quase poéticos são personagens bem reais, que nos chegam no prato e nos mostram de forma frontal e convincente que é possível fazer uma cozinha moderna e sofisticada a partir das raízes tradicionais.

O caminho pelo Foie Gras ou pelas Vieiras, nesta era da cozinha-espectáculo, teria sido certamente mais fácil, mas Renato Cunha e Dalila Carmo sempre preferiram ser fieis à sua identidade e fazer o que facilmente poderia ser chamada de moderna cozinha regional portuguesa.

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O Pão de Ameixa com Bacon e a Manteiga de Azeite abrem as hostilidades. Dois clássicos do Ferrugem que nos avisam desde logo que a criatividade anda de mão dada com a qualidade dos produtos para nos levar ao céu.

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Gelado de Inverno. Um Chupa Chupa de Polvo, que se come como um gelado, depois de “molhar” na maionese de alho e na cebola em pó. O pêndulo da balança vem em forma de camarão desidratado, muito estaladiço e cheio de sabor. Uma delícia, em todos os sentidos. Não há disto na Wonderland.
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Bacalhau com Todos. Carpaccio de bacalhau com creme de grão de bico, creme de azeite, tapenade e pickle de cebola roxa. É desarmante o arrojo e criatividade com que é tratado um prato tradicional da nossa gastronomia, com os elementos cuidadosamente dispostos num empratamento lindíssimo. Frescura, elegância e sabor levados ao extremo.
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O Caldo Verde do Ferrugem. A identidade de uma região dentro de uma malga. Sabor, técnica e conforto num prato singular.
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Tranche de Dourada em Caldeirada. Com os sabores característicos da caldeirada a surgirem em forma de um caldo que adorna a consistência da esmagada de batata e a delicadeza de um peixe cozinhado no ponto.
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Sorvete de Lima e Limão com Licor de Amêndoa Amarga (e Peta Zetas!). Um Limpa Palato fresco, guloso e divertido, que o estalar das peta zetas nos remete para a infância.
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Rabo de Boi com Puré de Cenoura. Sabores fortes, numa preparação em que o rabo de boi é desfiado e depois empratado em forma circular a fazer lembrar um osso buco. Técnica ao alto num conjunto que foi divinal no cruzamento com o vinho tinto.
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Espuma de Lichias, Gelatina de Maracujá e Salada de Frutas. Manga, Laranja e Framboesas, temperadas com a frescura da hortelã e adornadas pelo colorido das flores, uma pré-sobremesa onde o doce e o ácido surgem em excelente harmonia.
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Mousse de Pudim Abade Priscos. Mexer em território sagrado é sempre delicado mas o Ferrugem fá-lo novamente com sucesso. Servido num copo de gelo, numa abordagem mais leve e menos doce que a receita original, traz caramelo de aguardente vínica de laranja, numa textura aveludada com todos os sabores tradicionais do Abade Priscos, incluindo o toucinho. Uma nova interpretação harmoniosa e com todo o sentido.

Um menu-degustação bem desenhado, sem oscilações nem tempos mortos, que mantém alguns pratos clássicos bem conjugados com outros mais recentes. Ênfase para os produtos da época e a forma como são tratados, com uma técnica e precisão que serão talvez os factores mais diferenciadores desde a ultima visita. Não há muito mais a acrescentar a uma refeição sem falhas, onde tudo esteve impecavelmente preparado e onde o sabor teve sempre a palavra final.

Também o serviço de sala e de vinhos esteve à altura da cozinha. Muita eficiência na sala, acima de tudo a transmitir tranquilidade e um domínio total sobre o serviço. Nos vinhos houve uma grande evolução na carta, agora muito mais completa, com mais e melhores referencias. A refeição foi acompanhada pelo menu de vinhos desenhado para o efeito. Primeiro o Espumante Soalheiro Rosé. Depois o Royal Palmeira Loureiro 2009, que com as suas notas fumadas e de evolução encaixou muito bem na caldeirada. De seguida o tinto Colinas Reserva 2009 da Bairrada e para terminar, em beleza, o Porto Branco Andresen 20 Anos. Serviço, copos e temperaturas impecáveis. Nem um preciosismo a apontar.

No final saímos felizes. O nível praticado é muito alto e apesar desta não ser a praia preferida para os inspectores do Guia Michelin se banharem, com muitos produtos que se calhar não lhes falam à alma tanto como a nós (a saber, não há nenhum inspector português), não me parece exagerado admitir que com uma consistência destas esse reconhecimento possa surgir. Pelo menos a qualidade não fica nada abaixo de outros congéneres estrelados. Resta, agora que caminha rapidamente para a primeira década de vida, redobrar os parabéns ao casal Renato e Dalila pelo talento, coragem e sucesso com que têm norteado este Ferrugem. Notável.

Ferrugem
Rua das Pedrinhas, 2, Portela, Vila Nova de Famalicão
Tel: 252 911 700
Email: [email protected]
Fecha Domingos ao jantar e às Segundas
Preço médio sem vinho, 50€.

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