Herdade do Mouchão Tonel 3-4 2011 – na Rota da Alicante Bouschet

A história de hoje começa em França, algures em meados do século XIX, quando o viticultor francês Henri Bouschet (filho de outro viticultor, o famoso Louis-Marie Bouschet, criador da Petit Bouschet) cruzou a casta Grenache com a Petit Bouschet, dando origem à espécie Alicante Bouschet.  Henri Bouschet foi também o responsável pela criação da Grand Noir (Aramon Noir + Petit Bouschet), que ainda hoje podemos encontrar nas vinhas do Alentejo, como por exemplo na vinha velha José de Sousa, no Monte da Ribeira da José Maria da Fonseca. Mas para hoje interessa apenas a Alicante Bouschet, a casta tintureira muito produtiva, que necessita de muitas horas de sol e que nunca obteve grande reconhecimento enológico na sua terra natal. Já em Portugal a história foi completamente diferente.

Julga-se que chegou ao nosso pais pela mão da família Reynolds, que se instalou em Estremoz em meados do século XIX para explorar o negócio da cortiça e, anos mais tarde, já na transição do século, para abraçar o negócio do vinho. John Reynolds, da 3ª geração da família, adquiriu uma propriedade de 900 hectares a noroeste de Estremoz, na localidade de Casa Branca, já no distrito de Portalegre, de seu nome Herdade do Mouchão. Foi aqui que a família Reynolds desenvolveu o seu negócio do vinho, plantando várias vinhas, entre elas a pouco conhecida (à época) Alicante Bouschet, que se viria a adaptar de uma forma surpreendente àquele solo e clima, dando assim origem, após serem conhecidos os seus caprichos vitivinícolas, a alguns dos melhores vinhos produzidos em Portugal.

O charme da Herdade do Mouchão.

O sucesso da Alicante Bouschet ganhou fama por terras do Alentejo e, servindo de base para os seus principais vinhos topo de gama, é hoje unanimente considerada a casta raínha da região. Mas é nas vinhas da Herdade do Mouchão, com particular destaque para a mítica Vinha dos Carapetos, onde a casta atinge e sua máxima expressão. Não foi por isso de estranhar que este tenha sido o local eleito por João Pedro Carvalho, autor do blog Copo de 3, para dar início a uma viagem pela história da Alicante Bouschet no Alentejo, louvável iniciativa que teve lugar em Novembro passado.

A Herdade do Mouchão tem uma longa e rica tradição na história do vinho no nosso país e visitar aquela propriedade pela primeira vez, como foi o meu caso, é sempre um momento muito especial. A adega centenária contruída em 1901, foi renovada mas mantem-se cheia de charme, com os antigos toneis e prensas a darem uma aura de misticismo ao espaço. A preservação na forma como os vinhos continuam a ser produzidos, com a vindima manual, a pisa a pé em lagar e o estágio em grandes toneis de madeira antiga, encaixam na tradição de várias gerações e tornam este um lugar verdadeiramente especial.

Tradição.

Ainda em Lisboa, um arreliador acidente em cadeia na Ponte 25 de Abril e consequente corte de transito durante largas dezenas de minutos, fez-me chegar ao destino com um consideravel atraso e perder a visita comentada à Vinha dos Carapetos por David Marques Ferreira, director comercial e de marketing do Mouchão, que nos acolheu e guiou durante toda a manhã. A Vinha dos Carapetos é uma das vinhas mais emblemáticas que temos no nosso país e uma que melhor expressa o sentido de terroir. É daqui que nascem os grandes vinhos do Mouchão e não a visitar seria como ir a Roma e não ver o Papa, por isso mais tarde lá encontrei forma de furar o programa e fazer a minha própria visita com as fotografias da praxe.

Mas nem tudo foi mau, o atraso fez com que chegasse mesmo a tempo do início da prova dos vinhos, o que tratando-se da Herdade do Mouchão é sempre uma boa notícia. A prova decorreu no edifício da adega centenária, mais proriamente na sala da destilaria (1929), onde percorremos cinco colheitas, começando pelo Mouchão de 1988, passando pelo Mouchão 2002, Mouchão 2007, Mouchão 2011 e terminando, na novidade, um ícone sempre muito aguardado, Mouchão Tonel nº3-4 de 2011, o topo de gama da casa apenas produzido em anos excepcionais.

Os Mouchão são produzidos com 70% de  Alicante Bouschet e o resto de Trincadeira, fermentados em lagar com pisa a pé, estágio em velhos toneis e, antes de chegar ao mercado, outro estágio, agora em garrafa, por um período médio de dois anos. Tudo como manda a tradição. O Mouchão Tonel nº 3-4 é o topo de gama da casa, apenas produzido em anos excepcionais e como o nome indica, passa pelo estágio nestes dois míticos toneis de carvalho português, que ao longo do tempo se foram afirmando como aqueles onde o vinho apresenta um melhor comportamento. 100 % Alicante Bouschet da Vinha dos Carapetos, estágio em tonel durante três anos, seguindo-se de mais dois em garrafa, até ser finalmente declarada a excelência para ostentar o selo de um Mouchão Tonel nº 3-4. A enologia é da responsabilidade de Paulo Laureano.

Como seria de esperar todos os vinhos estavam uma maravilha, tendo eu eleito como favorito desta sessão o Mouchão de 2007, que atravessa uma fase extraordinária.

Herdade do Mouchão 1988 –  Aberto na cor, aromas de humus e terra molhada, é um vinho ainda com muita classe, fino mas presente, num final elegante de média proporção. Um vinho para apreciadores, que deixa perceber o carácter de um Mouchão com uns bons anos em cima e que proporciona ainda muito prazer (16,5).

Herdade do Mouchão 2002 – Este será provavelmente o Mouchão que mais vezes bebi nestes últimos anos, em diferentes momentos e ambientes, à mesa ou em prova, e a sensação que deixa é sempre a mesma. Parece que já atingiu o seu auge, mas ano após anos a prova mantem-se inalterada, o que pode levar à conclusão que esta delicadeza faz parte do seu próprio carácter. E eu gosto dele assim. Evoluído mas ainda com um bouquet maravilhoso. Difícil e autêntico. Terroso, vegetal, eucalipto, couro, ligeiro animal, complexo e vivo. A boca é macia, de seda, com frescos travos vegetais, numa elegancia que só o tempo consegue proporcionar. Os adeptos daqueles Mouchão cheios de vitalidade e concentração podem não achar grande piada, mas este está um vinho distinto e de grande personalidade (17).

Herdade do Mouchão 2007 – Este vinho traz consigo, ao longo da sua ainda curta vida, um impressionante histórico de prémios e pontuações que foi grajeando por esse mundo fora e ao fim de dez anos, quando ainda deixa perspectivar muitos mais pela frente, mostra-se numa fase esplendorosa. Já passou pela irreverência da juventude mas ainda não chegou à tranquilidade dos vinhos velhos, está naquela fase adulta, plena de nervo e complexidade, que alia de forma harmoniosa força e frescura. A expressão da Alicante Bouschet é notável, num vinho que merece tempo e sossego para o apreciarmos em pleno. Não foi talhado para grandes farras e arraiais, nem para consumos sofregos, antes para momentos de quietude, onde se possa apreciar na plenitude a evolução que vai acontecendo dentro do copo. Um grande Mouchão, com muitos anos de glória pela frente (18,5).

Herdade do Mouchão 2011 – É de momento a última colheita a chegar ao mercado, de um ano que o Tonel 3-4 lhe ofusca o estrelato, mas ainda assim está um vinho que sustenta da melhor forma a excelência da colheita de 2011. Cheio e concentrado, alguma rusticidade, fruta madura em bom diálogo com a expressão vegetal da Alicante, seco, de taninos frescos, cheios de força e juventude, numa boca profunda e de grande personalidade. É um Mouchão fiel aos seus principios, um vinho que o tempo vai encarregar de juntar aos melhores (17,5).

Herdade do Mouchão Tonel nº3-4 2011 – O topo de gama do Mouchão é um vinho produzido apenas em anos excepcionais e o seu lançamento no mercado é sempre um acontecimento. Provavelmente trata-se, a par do Pêra Manca, do vinho alentejano com maior aura de exclusividade. Este 2011 está um colosso. Que impressiona. Quase amedronta, quando tentamos vislumbrar o que poderá sair dali. Escuro como breu, fechado, grande concentração, que deixa escapar notas balsamicas e de fruta fresca, num todo contido mas exótico, a entreabrir a porta da complexidade que acompanha os grandes Mouchão. Estrutura e corpo, tudo cheio, embalado por uma frescura efectiva que embeleza o final distinto, longo e austero. De juventude evidente, irá crescer muito e abraçar o céu, num convidativo exercício para acompanhar durante as próximas décadas (18).

A terminar a prova tivemos ainda oportunidade de provar três amostras de casco de Alicante Bouschet, dos anos de 2013, 2014 e 2015, que certamente farão parte dos próximos lotes do Mouchão. Tempo houve ainda, abrindo o apetite para o almoço, para a prova do Mouchão Licoroso 2011, 100% Alicante Bouschet,  produzido na herdade desde 1929(!) e da Aguardente Velha Mouchão.

A famosa Vinha dos Carapetos. A excelência da Alicante Bouschet.

Terminada a primeira etapa desta rota pela Alicante Bouschet, o dia continuou em Estremoz, no restaurante São Rosas, de Margarida Cabaço, também ela produtora dos seus proprios vinhos, os Monte dos Cabaços. Ao almoço, em companhia das tradicionais delicias alentejanas, juntaram-se um conjunto de produtores da região que trabalham com a Alicante Bouschet, onde foi possível, em tom informal e descontraído, de irmos conhecendo as suas propostas e perceber as principais diferenças entre elas. Brilharam mais alto nas minhas preferências, ao lado do já referido Mouchão 2007 que também marcou presença no almoço, o Esporão AB 2007 e, excelente surpresa, o Herdade das Servas Alicante Bouschet 2014 (que ainda não está no mercado), com uma boa expressão da casta e de perfil invulgarmente fresco.

Confortados os estomagos, seguiu-se para a visita à bonita Quinta Dona Maria, onde Júlio Bandeira Bastos produz os seus excelentes vinhos. A guiar-nos esteve a enóloga Sandra Gonçalves, que nos proprocionou uma prova do portefólio da casa que culminou numa inédita vertical do vinho topo de gama Julio B- Bastos Alicante Bouschet. Sobre este visita escreverei mais detalhadamente numa próxima publicação.

O dia, que já ia longo, terminou em Vila Viçosa, no restaurante tradicional Ouro Branco, onde se provaram e beberam mais uns vinhos das garrafeiras pessoais dos presentes, a acompanhar uma deliciosa e reconfortante sopa de cação. Este jantar contou com a presença de Terryn Antony Olivier, produtor dos vinhos Dominio del Bendito na região espanhola de Toro, tendo trazendo consigo alguns dos seus vinhos, entre eles o raro e exclusivo La Cuesta de las Musas. Um pouco de Tinta de Toro para temperar um dia dedicado à Alicante Bouschet.

Feliz jornada vínica, através duma pedagógica viagem pela rota da Alicante Bouschet no Alentejo, na figura de alguns dos seus mais ilustres representantes. Memorável.

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