O que leva um produtor bem sucedido, com boa imprensa, com várias marcas bem implantadas no mercado e com um considerável séquito de seguidores a mudar radicalmente um projecto de mais de duas décadas? Parece loucura, mas foi precisamente isso que aconteceu com o produtor alentejano da Vidigueira, Cortes de Cima. Agora sob a responsabilidade de Anna Jorgensen, filha do casal Hans e Carrie Jorgensen, que deram início ao projecto em 1988, Cortes de Cima entra num novo capítulo, com novos vinhos, novas pessoas e novos métodos de fazer.
Quando Anna regressou a Portugal depois dos seus estudos de viticultura e enologia (pelo caminho um bacharelato na Universidade de Adelaide) acreditava que o rumo do projecto Cortes de Cima não era saudável e não tinha futuro. Assumiu por isso uma revolução gigantesca, da viticultura, aos solos, à enologia, preparando-se para os grandes desafios climáticos das próximas décadas. A transição para a viticultura biológica aconteceu, não sem que antes tivessem sido consultados alguns dos maiores especialistas nas suas áreas. Pedro Parra nos solos, Marco Simonit na viticultura e um estágio no Alto Adige, em Itália, nos especialistas de biodinâmica, Alois Lageder. Nada foi deixado ao acaso.
O mundo do vinho adora estas histórias e muito se tem falado e especulado sobre esta transformação ocorrida em Cortes de Cima. Há quem a olhe com estranheza e considere uma jogada muito arriscada, mas também há quem tenha ganho empatia pelo romantismo da nova fase deste produtor alentejano. A verdade é que os vinhos aí estão, prontos para serem apreciados e avaliados.
Num jantar entre amigos, onde se reuniram sete dos novos Cortes de Cima, tive a oportunidade de provar pela primeira vez estes vinhos. Foram 4 brancos e 3 tintos e as impressões são as que se seguem, por ordem de serviço:
CORTES DE CIMA CHAMINÉ BRANCO 2021
Quando, há uma década atrás, Cortes de Cima começou a vinificar uvas brancas na costa alentejana houve quem não acreditasse que isso daria bom resultado. Mas não só esses vinhos foram um sucesso (ainda da responsabilidade do antigo enólogo, Hamilton Reis) como as castas ali plantadas consolidaram-se de uma forma perfeita e hoje proporcionam fruta de qualidade inegável. Para o novo Chaminé branco (a marca Chaminé ganhou uma popularidade considerável nas mesas do nosso país, mas nesta nova versão a única semelhança é o nome, tudo o resto é diferente) escolheu-se um lote de Alvarinho e Sauvignon Blanc, de uvas provenientes de Vila Nova de Milfontes, na costa alentejana e de Viognier de vinhas na Vidigueira. A vindima é manual e acontece sempre à noite. Os vinhos fermentam com leveduras indígenas. Estágio em tanques de inox por 12 meses, com as borras finas. A filosofia de baixa intervenção na adega é transversal a todos os vinhos. Apesar de estarmos perante um branco feito com um lote de castas muito expressivas, o que poderia indiciar um desastre aromático, o vinho tem alguma contenção e equilíbrio, com sugestões de fruta branca e citrinos, bem amparadas por uma acidez fina e muito afirmativa. Pelo meio há um toque salino que lhe traz algum carácter. Gostei, mas teria gostado mais se o lote tivesse menos Sauvignon Blanc. Ainda assim um branco muito bem feito e agradável, com boa persistência, que vai reunir muitos adeptos.
CORTES DE CIMA CORTES DE CIMA BRANCO 2021
As castas e a proveniência das uvas para este vinho são as mesmas do anterior Chaminé Branco. A única diferença é que aqui temos um estágio de 12 meses em barrica e foudre. Desconheço se o lote é o mesmo, mas aqui a presença da Sauvignon Blanc é mais discreta, o que traz mais harmonia ao conjunto. Todo ele é mais amplo e persistente, com uma acidez vibrante que nos deixa a salivar. São vinhos jovens que presumem uma boa evolução em garrafa, é por isso muito provável que esta acidez venha a integrar-se melhor no conjunto durante os próximos anos de garrafa.
CORTES DE CIMA LOUR-INHO 2020
Continuamos na costa alentejana, agora para um lote de 75% de Alvarinho e 25% de Loureiro. Os métodos são sempre os mesmos, vindima manual noturna, leveduras indígenas, madeiras usadas (deixaram de ser usadas madeiras novas em Cortes de Cima) e pouca intervenção na adega. O alvarinho estagiou em foudre esloveno de 2000 litros e o loureiro em barrica de carvalho usado de 500 litros, durante 10 meses. Depois foi feito o lote, que estagiou mais 8 meses em tanques de inox. Este foi o meu branco favorito. Com um estilo muito preciso, fino, delicioso, com mais presença de boca que os anteriores. A fruta surge um pouco mais madura, mas tudo em equilibrio e nada em excesso. A acidez é perfeita, vibrante, quase electrica, a trazer uma frescura extrordinária ao vinho. Excelente.
CORTES DE CIMA SALINO 2020
O Salino será, até ao momento, o topo de gama branco do produtor. Nasce de uma joint venture de Anna Jorgensen e Dirk Niepoort. É um monocasta de Loureiro, das tais vinhas da costa alentejana, que estagiou em barrica usada de carvalho francês de 500 litros e em inox durante 12 meses. De facto o nome não podia ter sido melhor escolhido, porque a salinidade, a par da acidez, tem de uma presença efectiva neste vinho. É um branco singular, puro e profundo, muito elegante, com uma acidez valente, quase violenta a conferir muita frescura e comprimento. Há momentos que nos pode fazer lembrar os brancos do Minho. Gostei mas achei ainda muito fino e jovem, fico curioso para ver para onde vai evoluir.
CORTES DE CIMA CHAMINÉ TINTO 2020
Passamos aos tintos começando com o entrada de gama Chaminé, que há semelhança do branco também apenas manteve o antigo nome mudando tudo o resto. Lote de Syrah, Touriga Franca, Petit Verdot, Cabernet Sauvignon e Alicante Bouschet, das vinhas de Cortes de Cima, na Vidigueira. Os métodos são os mesmos dos brancos. Aqui a fermentação inclui um pouco de uvas com engaço e o estágio é por 10 meses em inox e em barricas de carvalho francês usadas. Uma abordagem um pouco mais freak, a piscar o olho aos apreciadores dos vinhos naturais. Gostei, mas podia ser um pouco menos funky.
CORTES DE CIMA CORTES DE CIMA TINTO 2020
Lote de Syrah e Touriga Franca das vinhas da Vidigueira. Aqui a percentagem de engaço é maior, cerca de 50%, enquanto que o estágio acontece por 12 meses em barricas de carvalho francês e finaliza em inox. Será provavelmente o vinho mais alentejano desta nova vida de Cortes de Cima. Mais encorpado, apesar de manter um perfil elegante, com uma boa presença de boca e uma acidez muito bem proporcionada. Excelente persistência final. Gostei muito.
CORTES DE CIMA UMA 2019
O UMA é um vinhas velhas de Castelão, de uma vinha com mais de 70 anos que encontraram na Serra de São Mamede, a 700 metros de altitude. Pisa a pé, fermentação espontânea com baixa extração e estagio de 14 meses em barricas usadas de carvalho francês. Foram produzidas apenas 600 garrafas. Um tinto muito elegante e preciso, leve e fresco, com uma base frutada muito apelativa e uma excelente presença de boca. Gostei muito e entrou directamente para a lista dos meus Castelão favoritos.
No geral gostei muito dos vinhos, bem feitos, muito elegantes e a sugerirem boa evolução nos próximos anos. Os Chaminé, ainda assim, foram os que menos apaixonaram. Muito bem os Cortes de Cima, excelentes o Lour-inho e o UMA, enquanto que o Salino, tendo gostado, fico na expectativa de como vai evoluir. Lembro que estamos a falar das primeiras colheitas desta nova fase do projecto, pelo que é natural que as próximas cheguem mais afinadas e precisas. Uma questão inevitável é o preço e aqui estes novos Cortes de Cima podem encontrar alguma resistência por parte dos consumidores. Não são valores muito competitivos, apesar de depois de os provarmos ficarmos com outra ideia, ainda assim podiam ter um preço mais meigo. Por último resta referir que numa época em que se valoriza muito o produto autóctone, aqui não temos vinhos de perfil alentejano, nem sequer castas alentejanas. Quem gostar de vinhos clássicos do Alentejo, não vai encontrar muito aqui. Do meu lado, julgo que vou voltar a eles nos próximos anos.