Gonçalo Cadilhe, um dos meus escritores de viagens favoritos, refere-se constantemente ao tempo como o bem mais valioso que temos. Diz ele que não adianta ter muito dinheiro, se para o conseguirmos ficamos sem tempo para viver. É óbvio que encarar a vida com este romantismo não está ao alcance de todos, mas não deixa de causar uma pontinha de inveja. É confrontado com esse flagelo dos tempos modernos que me encontro neste momento, com dezenas de rascunhos acumulados no blog, sem tempo previsto de publicação. Este que é hoje publicado, e os próximos que aí vêm, saem em modo abreviado, num forcing para que as coisas se componham.
Há já algum tempo que me chegavam ecos de coisas boas vindas de Famalicão, mais propriamente de Portela, região pouco provável no que a projectos de cozinha de autor diz respeito, mas onde Dalila e Renato Cunha fizeram questão de trazer ao Minho a modernidade da sua cozinha. Desde 2009 que estava em agenda, o ano passado escapou por pouco, mas agora em nova incursão nortenha foi de vez.
Chegar ao restaurante não foi difícil, ainda para mais num percurso favorecido por um por de sol que pintava de laranja brilhante a paisagem minhota. Chegados à aldeia de Portela é ver com atenção a placa que indica o restaurante. Edifício bonito em pedra granítica, alto pé direito, sóbrio na decoração moderna, destaque para o pavimento em calçada portuguesa afagada, a trazer Portugalidade ao espaço. O défice de luz natural, acaba por criar um ambiente mais convidativo a dias frios ao calor da lareira, que ao período estival, mas nada que a comida não resolva.
Em dia de semana ao jantar, a sala esteve para o despido, pouco menos de meia.
Já sentados. Carta curta, que já apresenta a ementa de verão, com três propostas de menus, Clássico (30€), Verão(30€), e Júnior (15€). Os primeiros com quatro momentos, o terceiro disponível apenas para crianças até aos 10 anos, com três. Pelo que já tinha lido sobre o restaurante reconheço-lhe alguns pratos da carta, os proclamados clássicos. Optou-se pelas duas ofertas de menus.
A refeição começa com um couvert com Pão de Nozes, Alperces e Ameixas, acompanhado por uma pasta de azeite com alho. Óptimo o pão, muito boa a pasta. De seguida chega o Caldo Verde, a Saudação dos Chefes, ou amuse Bouche em franciú. Muito aveludado e saboroso, acompanhado por broa em modo crocante, também ela deliciosa, unidos por um travo delicioso de chouriço, que não se avistava. Belo prelúdio.
Cavala Fumada com Caviar de Vinagre Moura Alves. Fresquíssima a cavala, com textura e sabor perfeito. Pelo meio havia umas cebolinhas adocicadas com alvarinho que casavam lindamente com o peixe, e com a acidez das esferificações do bairradino Moura Alves. Um excelente prato. O meu favorito.
Crocante de Alheira de Caça, Puré de Maçã Reineta e Compota Agridoce de Tomate Cereja. Conjunto bem conseguido, a alheira era de excelente qualidade e combinava superiormente com o agridoce da compota, mas um prato que não fica a dever muito à originalidade.
No extremo oposto no que à originalidade diz respeito está o prato seguinte do menu Verão, uma caixinha de cartão chega à mesa, igual às que nos habituámos a ver nas pastelarias antigas, que diz na tampa Pastel de Bacalhau com Natas. Abrimos, e lá dentro encontramos, literalmente, um pastel de nata. Tamanho, aspecto, textura, tudo, só chegamos ao bacalhau quando provamos a massa, cremosa, com sabor a bacalhau… com natas. A trazer um ar divertido ao menu, muito original e muito bom. Gostei.
Lombo de Bacalhau com Azeite Transmonatno, Coral de Azeitona e Legumes Salteados. Este prato não provei (Menu Clássico) mas quem o fez, teceu-lhe elogios.
Sorvete de limão com amêndoa amarga. Com peta zetas, a refrescar o palato e os sentidos.
A partir daqui foi uma desgraça com as fotografias, mas a refeição manteve o nível muito bom que estava a ter. Houve um prato delicioso de arroz com robalo e boletos, sou suspeito porque adoro pratos de arroz, e quando bem feitos acabam por ser os meus favoritos, era o que teria acontecido aqui não fosse aquela cavala entradeira. Também retive uma bochecha de vitela deliciosa, que não tendo vindo no meu menu, não resisti a surripiar. Nas sobremesas a estrela foi a pêra rocha do oeste com vinho do porto, que para além de estar divinal, mais uma vez demonstrou o especial cuidado na escolha e qualidade dos produtos.
O serviço de sala esteve bem, conhecedor, simpático e atento. Pequeno reparo apenas nos tempos entre pratos, em alguns casos longos o suficiente para serem notados.
Nos vinhos, a carta não sendo especialmente longa, consegue oferecer uma escolha razoável. Aposta sobretudo, e bem, em vinhos da região, Vinho Verde e Douro, não faltando no entanto algumas referências a outras regiões. Boa oferta a copo. Preços muito justos. Curioso apresentar o preço da taxa de rolha para o BYOB na carta, algo que não é muito visto. O serviço foi correcto, desde as temperaturas, aos copos.
Acompanhou-se a refeição sempre a copo, primeiro com o Soalheiro 2010 (3,5€), depois o Casa de Santar Reserva Branco 2009 (4€), seguindo pelo Sedna Reserva Tinto 2007 (4€), e terminando com o Porto Warres LBV 2001 (4,5€).
Está de parabéns este Ferrugem e seus proprietários, pela sua cozinha de autor, pegando no receituário tradicional, e vestindo-o com originalidade e sofisticação. É evidente, e de louvar, a preocupação com a qualidade do produto e a técnica com que o utilizam. Vale muito a pena, em passeio nortenho, atalhar por Portela.
Ferrugem
Rua das Pedrinhas, 2, Portela, Vila Nova de Famalicão
Tel: 252 911 700
Email: [email protected]
Fecha ao Domingos ao jantar e à Segunda
Preço médio sem vinho, 35€.