A prova da Barbeito que ocorreu recentemente no âmbito do evento Grandes Escolhas Vinhos & Sabores 2019, fez-me recuperar este rascunho que andava aqui à espera de ser publicado sobre uma memorável jornada na Ilha da Madeira, quando visitei os Vinhos Barbeito. Sendo assim farei um dois em um, juntando nesta mesma publicação a excepcional prova acima referida, com a inesquecível visita que fiz em 2016 ao universo da empresa, onde fui recebido com uma disponibilidade e simpatia sem igual.
Comecemos pela prova no evento da Grandes Escolhas, onde Ricardo Diogo surgiu particularmente inspirado, para mostrar aos presentes algumas novidades de portefólio e aqueles vinhos que neste momento mais prazer lhe dão fazer. Desta vez, como o próprio fez questão de frisar, ficaram de fora aqueles vinhos muito antigos, preferindo mostrar lotes onde se busca a frescura em detrimento da concentração. Para o efeito seleccionou oito vinhos que foram apresentados com a paixão inigualável que deixa transparecer quando fala dos mesmos.
Pela ordem de serviço:
Bastardo Reserva Duas Pipas: Um vinho leve e fresco, com muita pureza de fruta e uma acidez muito bem colocada. Ao mesmo tempo mostra alguma complexidade e profundidade, uma característica que os Madeiras jovens da Barbeito conseguem oferecer. Foram engarrafadas 1700 garrafas.
Sercial Frasqueira 1993: É notória a forma respeituosa e elogiosa como Ricardo Diogo fala sobre Manuel Eugénio Fernandes, uma figura que considera importantíssima no Vinho Madeira. Este Senhor, além de viticultor, também vinificava alguns vinhos por brincadeira, mas os seus vinhos ficavam tão secos e com uma acidez tão violenta, que só ao fim de muitos anos se conseguiam beber. Este Sercial é um lote da Barbeito a partir desses lotes originais de Manuel Eugénio e um vinho que exprime bem a acutilância da casta Sercial nos Madeiras. Seco, duro, profundo, com muito nervo, levemente salgado, elevado por um aroma complexo de fruta madura e frutos secos, muito fino e longo. Apenas 600 garrafas, na lógica de exclusividade que a Barbeito já nos habituou.
Verdelho Frasqueira 1995: A história do lote é idêntica ao Sercial, também a partir de um lote de Verdelho de Manuel Eugénio, de uvas provenientes das vinhas do lado norte da ilha, da zona da Ribeira da Janela. Apesar de dois anos mais jovem, este meio-seco surge mais pronto que o Sercial, o que no caso dos Barbeito não queira dizer que não mantém uma acidez efectiva, num conjunto vibrante, complexo e untuoso, com notas de frutos secos e especiarias e um final de boca com um travo levemente salgado. Uma delícia. 1000 garrafas.
Vinho do Embaixador Boal 40 Anos: Com este vinho entrámos numa fase mais emocional da prova. É com estes lotes especiais, por vezes constituídos com mais de cinco, seis, sete vinhos diferentes, alguns deles muito antigos, que Ricardo Diogo dá largas à sua imaginação e inspiração, brilhante na precisão, qual relojoeiro suiço, de como desvenda cada lote, alcançando excepcionais resultados finais. Este vinho de homenagem a Fernão Favila Vieira é um excelente exemplo de um madeira de luxo, complexo, com uma panóplia de aromas e sabores tão amplas, dos iodados, aos salinos, aos fruto secos, às especiarias, tudo equilibrado por uma doçura perfeitamente casada com uma acidez fina, vibrante e arrebatadora. 739 garrafas. Seria uma tortura ter de escolher apenas um vinho de todos os que vieram a esta prova, mas se o tivesse mesmo de fazer provavelmente seria este Boal do Embaixador.
Avô Mário Bastardo 50 Anos: Prosseguimos com os vinhos de homenagem, este a Mário Barbeito, avô de Ricardo Diogo. Um vinho composto por um lote de vários vinhos da casta Bastardo, vinificados e envelhecidos de formas diferentes, dos mais jovens já vinificados por Ricardo Diogo (vinhas de São Jorge) a um muito antigo vinificado pelo seu avô. Escusado será dizer que estamos novamente perante um vinho de muito carácter, único, irrepetível, com uma complexidade esmagadora e um toque de exotismo que nos deixa a viajar pelas paragens mais idílicas que a nossa imaginação consegue alcançar. Magnífico. 550 garrafas.
Malvasia Frasqueira 1986: Regressamos aos Frasqueiras, vinhos produzidos exclusivamente com uma só casta, de uma só colheita, envelhecidos em cascos de madeira pelo menos durante vinte anos. Quem conhece a Ilha da Madeira sabe o tão especial que é a Fajã dos Padres, um lugar singular, em que praticamente os únicos acessos são de barco ou através de um vertiginoso teleférico. Foi daqui que saiu este Frasqueira, um vinho muito raro, envelhecido pelo método de canteiro o que proporcionou uma concentração e um afinamento notáveis. Mais escuro que os demais, mais doce também, com uma grande complexidade aromática, muito profundo, concentrado, rico, com uma acidez firme a equilibrar e refrescar todo o conjunto. 554 garrafas.
Malvasia 50 Anos O Japonês: Em 1989, Ricardo Diogo era professor de história e vivia a sua pacata vida quando a sua mãe lhe pediu ajuda no negócio familiar. A Barbeito passava por dificuldades e era necessário encetar negociações com os parceiros japoneses que desde 1967 representavam os seus vinhos no Japão. Essas conversaçoes correram tão bem que a parte japonesa passou a deter 50% da Barbeito, ao mesmo tempo que Ricardo Diogo, fruto da empatia criada durante o processo, foi “obrigado” a mudar de vida e a ser parte activa na gestão da empresa. Este vinho nasce precisamente para homenagear, em jeito de gratidão, Yasuhiro Kinoshita, o homem que provocou esta mudança radical da sua vida. E se Ricardo Diogo idealizou em criar um vinho em grandez, à dimensão do homenageado, conseguiu-o plenamente. O laivo esverdeado no bordo não engana, um lote em que o vinho mais antigo tem mais de cem anos, pouco doce para um Malvasia, bem à imagem da identidade dos actuais Barbeito. O excelso da elegância, equilibrado, sedutor, longo e intenso, uma ode à nova ordem dos Madeiras. Foram engarrafadas em Maio de 2019, 655 garrafas.
Mãe Manuela Malvasia 40 Anos: No momento que a prova caminhava para o fim, já com a plateia totalmente arrebatada com os vinhos e o entusiasmo de Ricardo Diogo, chegou o vinho de homenagem à sua mãe que viria a fechar a noite com chave de ouro. O lote estava feito, mas Ricardo não estava totalmente satisfeito com o resultado final, faltava ali qualquer coisa, um pormenor, uma afinação, um detalhe, uma peça que iria completar o puzzle. Depois de queimar muitos neurónios, Ricardo Diogo encontrou a solução num garrafão de Malvasia 1880 que surripiou em segredo à sua mãe. E assim surgiu o Mãe Manuela como o conhecemos hoje, de novo um tratado de bem trabalhar a Malvasia. Muito complexo, cheio e profundo, frutos secos, iodo, travo salino, pleno de sabor, com uma doçura perfeitamente proporcionada à acidez fina, num final de boca muito longo e persistente. Uma delícia.
Conforme referi no início da publicação, retrocedamos agora até ao ano de 2016 e à Ilha da Madeira, onde tive oportunidade de visitar vários produtores, inclusivé a Adega de São Vicente, na costa norte, a única que vinifica vinhos tranquilos na ilha. Foram dias cheios, de muitos ensinamentos, sobretudo no que toca ao Vinho Madeira, um dos grandes vinhos fortificados do mundo e que por vezes é um pouco esquecido, mesmo nos meios mais conhecedores.
Uma dessas visitas foi à Barbeito, a empresa familiar fundada em 1946 por Mário Barbeito de Vasconcelos e que chega aos dias de hoje cheia de vigor, como uma das mais dinâmicas empresas produtoras de Vinho Madeira. Nesta visita às suas instalações em Câmara de Lobos, fui recebido e conduzido pelo enólogo Nuno Duarte, que amavelmente me mostrou a moderna adega construída em 2008 e, mais tarde, já durante a prova, agraciado com a presença de Ricardo Diogo.
Desde o início dos anos 90, após ter herdado das mãos de sua mãe, Manuela de Vasconcelos, a responsabilidade dos destinos da empresa, Ricardo Diogo encetou uma cultura de modernização na sua gestão, ao mesmo tempo que criava um perfil muito próprio aos vinhos que daí começou a produzir. Partindo sempre do máximo respeito pelos métodos tradicionais que os seus antepassados foram preservando, teve o talento de tornar a Barbeito uma das empresas mais empreendedoras do sector, moderna, viva, audaz, com a capacidade de renovar a imagem do Vinho Madeira e lhe construir uma identidade à dimensão do século XXI.
Nesta visita, enquanto passeavamos por entre cubas, prensas e toda a maquinaria existente numa adega moderna, o enólogo Nuno Duarte ia contando um pouco da história da Barbeito e da sua aventura pessoal de vir trabalhar com o Vinho Madeira. Explicou métodos de produção e o desafio que veio encontrar numa região muito peculiar, onde as temperaturas elevadas e os processos de oxidação são parte do adn da forma como se produzem estes vinhos únicos. Também os métodos de canteiro ou estufagem, próprios no envelhecimento dos Vinho Madeira, deram origem a mais uma enriquecedora aula.
A estufagem, utilizada para os vinhos de gamas mais baixas, consiste em proporcionar um “envelhecimento acelerado” através do estágio em cubas de inox aquecidas que vão activar a evolução e oxidação dos vinhos, para que fiquem prontos a serem engarrafados o mais breve possível. Já o método de canteiro, o mais nobre e tradicional, fica reservado para os vinhos de gamas mais altas, os grandes Madeiras. Em armazens de grandes dimensões, centenas de pipas são empilhadas por andares, dos vinhos mais novos no topo, aos mais antigos em baixo, ficando sujeitas à temperatura daqueles espaços, algo que o clima ameno da Madeira proporciona na perfeição. Ao longo dos anos, o processo repete-se, os vinhos já prontos que se encontram na base, atingindo as concentrações desejadas, vão sendo retirados e dando o lugar aos novos vinhos que entram para o topo da pirâmide.
Depois da aula teórica, passámos à parte práctica. Numa das salas de prova destas instalações na Câmara de Lobos, Nuno Duarte preparou uma prova fantástica, onde foi possível entender da melhor forma os diferentes estilos de Vinho Madeira e, o mais importante na minha opinião, o perfil muito próprio que procuram para os Vinhos Barbeito. A meio da prova, Ricardo Diogo juntou-se à mesma e trouxe com ele um conjunto de vinhos muito antigos que ia abrindo para avaliar o seu estado.
A forma apaixonante e emotiva como Ricardo Diogo fala dos seus vinhos e da história do Vinho Madeira chega a ser desarmante. Quase que remete, naquele momento, aqueles vinhos extraordinários para segundo plano. Adora contar histórias. E por cada garrafa que vai abrindo e apresentando conta-nos uma história. Pode ser do local onde nasceram as vinhas, de alguma personagem que durante a história do vinho teve uma participação importante no seu percurso (lembro que alguns destes vinhos têm mais de um século, terão concerteza assitido a muitas histórias dignas de serem contadas), ou da forma, por vezes recambolesca, como chega aos lotes finais dos vinhos que produz.
Enquanto nos deleitamos com aquele momento, Ricardo Diogo por seu lado, por cada garrafa que vai abrindo e provando, vai idealizando na sua cabeça em que lote aquele vinho poderá participar. É uma busca constante, do melhor vinho para chegar ao melhor lote, dando a entender pela emoção com que fala, que esse é um exercício que o preenche totalmente. Olha para uma garrafa de Madeira com mais de cem anos que tem na mão de uma forma totalmente diferente de nós. Enquanto olhamos para aquele vinho a imaginar a sua potência, a sua concentração, a sua complexidade, Ricardo imagina os lotes que aquele vinho lhe vai permitir enriquecer. Talvez por isso tenha uma atitude tão desprendida com os mesmos, abrindo-os em qualquer circunstância que ache adequada, sem pensar muito se ainda tem muitas ou poucas garrafas.
Vou abreviar a parte da prova que consiste nos vinhos provados, as imagens falam por si e seria até fastidioso discriminar todos os vinhos desta ocasião. Só registar que, obviamente, estivemos perante vinhos extraordinários, alguns mesmo que se podem colocar no restrito grupo dos grandes vinhos do mundo. Reteve-se o carácter do perfil dos Barbeito, onde a acidez tem um papel fulcral e a elegância assume um papel preponderante. Isso é uma característica que ainda se nota melhor nos vinhos mais doces, como os Malvasia.
Da concentração férrea dos vinhos muito antigos, alguns do século XIX, à elegância desconcertante dos lotes mais recentes, passando pelos clássicos Frasqueiras, foi um recital de Vinho Madeira e uma masterclass inesquecível. A prova tinha terminado, mas o dia não. Seguiu-se o almoço, com uma tradicional espetada num restaurante típico da região, em jeito de prelúdio para a visita a algumas vinhas da parte da tarde.
As vinhas, ao contrário do que estamos habituados a ver no continente, encontram-se em pequenas parcelas espalhadas por diversos pontos da ilha, o que dificulta e encarece a sua produção. Algumas estão em lugares tão bonitos que não há como estes vinhos não serem bons. Estas parcelas que visitámos na altura, no lado sul da ilha, viradas ao oceano, estavam a ser preparadas para os primeiros brancos tranquilos que a Barbeito viria a lançar tempos mais tarde.
Passar um dia com Ricardo Diogo no seu habitat natural é perceber a paixão que emprega ao seu trabalho, aos seus vinhos e à sua região. As suas convicções, os seus princípios, a forma inovadora e por vezes disruptiva com que olha para o sector, seja por exemplo na irreverência da imagem que escolhe para os seus vinhos, ou na forma carinhosa como trata a casta Tinta Negra, vista como o patinho feio das castas madeirenses. Note-se que a Barbeito foi a primeira casa a envelhecer Tinta Negra por método de canteiro, apostando claramente no seu potencial. E assim que a legislação o permitiu (2015), foi também a primeira a colocar o seu nome num rótulo com o lançamento do Barbeito Ribeiro Real Tinta Negra 1996.
Ao fim destes anos que a Barbeito leva com Ricardo Diogo no leme a empresa tem sido uma autêntica referência nom sector e produzido alguns dos vinhos mais excitantes que os apreciadores têm tido a oportunidade de beber. Que esta aura de genialidade perdure por muito tempo. Para terminar, resta-me agradecer a generosidade com que fui recebido.