Modernizar a tradição é um chavão que empregamos com tanta facilidade que por vezes até nos esquecemos da extrema complexidade que o sentido desta expressão encerra. Complexidade em assumir, em empreender, em atingir. A consensualidade nestes casos é quase impossível e há um facto que está sempre inerente a este propósito, é um objectivo difícil de conseguir. Deve por isso dar-se destaque a quem o consegue, ainda para mais numa região fechada e conservadora por natureza, o que engrandece ainda mais o feito.
As “histórias escritas com vinho” da Casa da Passarella têm feito na perfeição a ponte entre a identidade e a tradição da história desta casa centenária, junto à Serra da Estrela, com a modernidade e as exigências de vender vinho em pleno século XXI. Além do portefólio diversificado e abrangente, trazendo novos públicos para o Dão, tem tido este projecto na sua estratégia de comunicação, ousada mas com lógica, um veículo eficaz para cimentar o seu espaço e a forma como os seus vinhos e suas histórias chegam ao consumidor. Mais que merecido, por isso, o prémio para melhor “Campanha Publicitária” em 2015, atribuído pela Revista de Vinhos no âmbito dos seus “Os Melhores do Ano 2015“.
Em termos de vinhos, e depois de um ano ofuscado pelos Fugitivo – das coisas mais excitantes que surgiram no panorama vínico nacional nos últimos tempos – hoje o assunto é o Abanico, um vinho que representa o oposto destes no portefólio do produtor. Enquanto que os primeiros expressam, sem rodeios, o carácter e a tradição dos grandes vinhos do Dão, este Abanico traz a modernidade e a destreza para abrir as pesadas portas do Dão ao grande público. E se por vezes o termo modernidade, nestas coisas do vinho, pode ter uma conotação menos positiva, neste caso é precisamente o contrário. É notável a forma como o Abanico nos recebe no seu manto macio e acessível sem deixar de cheirar e saber a Dão.
Há dias tive um encontro acidental com o dito, quando surgiu a 5,95€ (!) nos escaparates, em forma de uma promoção que o Pingo Doce efectuou sobre os vinhos do Dão.
É o “Reserva” da casa. Touriga Nacional na maioria, com Alfrocheiro e Jaen. Vinificado em cubas de cimento e estagiado em barrica durante 12 meses. Desde a última prova, em Janeiro de 2015, o vinho está mais bonito e aprumado. A barrica, que sempre esteve bem integrada, cai agora que nem uma luva. O aroma, que é intenso, mantém as notas de fruta preta madura bem combinada com apontamentos florais mais comedidos, resultando num nariz apelativo e com boa profundidade. A boca mostra mais elegância que o nariz sugere. Algum corpo, taninos macios, cheio de sabor, mas temperado por uma acidez viva que equilibra o conjunto e lhe confere uma frescura que empurra o vinho para patamares mais altos. Perfeito no adorno da modernidade com o lado mais fresco da região. Impossível não gostar. Muito bem feito, na linha dos mais recentes Passarella (16,5).
“Conta-se que um dia um escultor ficou com o olhar preso num conhecido fenómeno da natureza: um pavão exibia o seu manto majestático de penas, só para chamar a atenção da fémea e saciar as suas vontades proibidas. O espectáculo fora de tal forma esplêndido, que dois dias mais tarde tinha já o artista esculpido uma peça baseada no que tinha visto. Deu-lhe o nome de leque. E para poder sobreviver, deu-lhe também uma utilidade simples. E os leques foram-se reproduzindo pelas modas, pelas gentes, pelos palácios, pelas óperas e pelas épocas, como um adereço imprescindível. Mas o mundo haveria sempre de usar o leque para expulsar o calor, nunca para o deter dentro de si. O mundo, excepto uma mulher: Teresa. Teresa sempre fora uma rapariga tímida e reservada, mas aos 21 anos recebeu um presente secreto, uma carta e um leque de um admirador, um nobre que vivia em Sevilha. Na carta, concedia-lhe o absoluto e em troca apenas lhe pedia que dormisse sempre com o leque por perto. No momento em que, pela primeira vez, pegou no leque, Teresa tornou-se numa imperatriz. Todas as noites sonhava com estranhos pavões a saciarem as suas vontades proibidas.”