“Naquela mesa que volta e meia imagino representar a gastronomia de uma região ou província, coloco, com cuidado quase religioso, o queijo da serra (para meu gosto, o amanteigado, esbordando, gordo e planturoso, se se abre uma brecha na casca de marfim velho), dos melhores do mundo, sem sombra de lisonja ou exagerado nacionalismo…
Ao lado fazendo-lhe excelente acompanhamento, um encorpado líquido de requintado travor, colhido nas encostas do Entre-Dão e Mondego, fruto das apreciadas castas de Tourigo e de Creto-Mortágua: o chamado vinho do Dão, obrigatório em refeição onde o néctar maduro (branco ou tinto) seja rei.”
Socorro-me deste parágrafo de Maria de Lourdes Modesto, retirado da sua bíblia, Cozinha Tradicional Portuguesa, para descrever de forma romântica e certeira, como só ela faz, os produtos mais notáveis desta região, o Queijo da Serra e o Vinho do Dão. Os enchidos vêm logo a seguir.
Andamos por terras da Beira Alta, lugar de gente valente, cujas histórias de coragem perduram até aos nosso dias. As nuances do relevo marcam a geografia da região e concedem-lhe condições privilegiadas para a pastorícia e a agricultura. Onde a Estrela, uma das maravilhas naturais do país, com a tranquilidade da sua paisagem e as suas casas de granito, é figura central e incontornável. Nestas origens se desenha a cozinha tradicional do Dão e da Serra da Estrela, saberes e sabores que os serranos continuam a manter e que aqui se recuperam, numa pequena lista de lugares onde é possível ter contacto com esta realidade.
Restaurante Vallécula, Praça Dr. José de Castro, Valhelhas – 275 487 123 ou 962 778 111
O Vallécula é um velho conhecido e uma das maiores referências gastronómicas da região. Para quem gosta de bem comer é sempre um lugar incontornável numa ida à Serra. O charme do lugar começa logo na tipicidade da casa de granito do século XVII onde está inserido. Segue no seu interior, com o aconchego e o romantismo da sua sala de refeições. E termina já à mesa com uma gastronomia autentica e muito bem tratada, onde os produtos locais são tidos em grande consideração.
A ementa baseia-se nas especialidades tradicionais. Com tanta e tão boa oferta, escolher torna-se sempre um momento difícil. Para entrar, requeijão, doce de figo e paté de fígado, a darem as boas vindas na companhia do bom pão da região. Depois, um Lombinho de Vitela Beirã, a desfazer-se na boca como manteiga, grelhado com uma mestria ao alcance de poucos. Costoletinhas de Borrego, com igual tratamento, suculentas e saborosas. Acompanhados por arroz branco, esparregado de grelos (muito bom), puré de maçã e coulis de frutos silvestres. Para terminar, umas Papas de Caroulo com Mel e um Salame de Castanha. Cozinha pura, sem artifícios, uma ode aos produtos locais.
O serviço é simpático mas por vezes lento, nada de preocupante para quem está em lugar tão aprazível. Os vinhos são bem tratados, com boa carta, exclusivamente focada nas referências da região. Os preços estão dentro do normal, se bem que convém escolher bem. Bebemos, nesta última visita, em bons copos e a temperatura correcta, o CARM Reserva 2010 (16€).
Em jeito de conclusão. Jantar – onde o charme do lugar atinge a plenitude – neste Vallécula é ter a oportunidade de provar alguma da melhor gastronomia que a nossa cozinha tem para oferecer. Obrigatório.
Preço médio sem vinho, 25€.
Restaurante Póvoa Dão, Póvoa Dão, Silgueiros, Viseu – +351 232 958 557
Ir ao Póvoa Dão é mais que ir fazer uma refeição, é entrar na historia de uma aldeia medieval, com as suas casas típicas de granito irrepreensivelmente reabilitadas. Mas aqui foi-se mais longe, houve a preocupação de recuperar também hábitos e costumes. Hoje a aldeia de Póvoa Dão, onde o turismo também tem lugar, oferece uma experiência de natureza num genuíno regresso ao passado.
Numa dessas casas encontramos o restaurante. Lugar acolhedor, com as paredes de granito adornadas por janelas de madeira, a darem ao local uma atmosfera rústica e autêntica. Um conjunto de pequenos recantos, servem de românticas salas de jantar, mas é na sala central que tudo acontece, onde a grande lareira e o forno deixam ver a preparação dos pratos.
As propostas gastronómicas andam à volta do receituário regional. Cabrito à serrano, que chega à mesa brilhante e macio, carne a separar-se do osso em lascas, muito bem assado, muito bom. Bons pratos de bacalhau. Em arroz ou com broa, por exemplo, ambos bem interpretados. As doses são fartas, pelo que em muitos casos são suficientes para duas pessoas.
A carta de vinhos é bastante aceitável. Reduzida substancialmente da primeira para a segunda visita (anos mais tarde), tem lógico destaque nos vinhos do Dão, com boas referências a preços honestos. O que também mudou da primeira para a segunda visita foi a oferta de vinho a copo, que não existia e passou a haver. Os copos são bons e o serviço também. Saúda-se um lugar onde se pode beber vinho.
Um restaurante que vale muito a pena conhecer, pela gastronomia, pelo preço, honesto para o que se obtém e, pelo belo lugar onde está inserido.
Preço médio sem vinho, 17,50€. [Fechado em 2017]
O Júlio, Rua do Loureiro, 1, Gouveia – 238 083 617
Finalmente conheci o mítico Júlio de Gouveia, outra grande referência da região, mas que só agora me foi possível visitar.
Júlio Lameiras gere há muitos anos esta casa de bem comer, junto ao centro histórico de Gouveia. Primeiro foi tasca, depois passou a restaurante e agora é um restaurante ainda mais arrumadinho, em virtude da ultima intervenção, que o levou até às instalações actuais. Casa simples, no espaço e na decoração, com a agradável esplanada, onde ficámos, a invadir a estreita travessa onde está localizado o restaurante. Com a influencia da Serra ali ao lado, a oferta só poderia percorrer a tradição da sua cozinha.
Para trincar, fomos no Arroz de Carqueja com Entrecosto e nas Trutas de Escabeche, duas especialidades da casa. E fomos bem. Tudo bom, com destaque para a truta, gorda e muito bem acompanhada pelo delicioso escabeche e por uma tenra e cozinhada no ponto, couve lombarda. Mas havia mais oferta. Feijoca à Pastor, Arroz de Feijão com Entrecosto, Cabrito com Miscaros e vários pratos de caça, estes dois últimos na época. Há meias doses, o que para quem não coma muito pode ser excelente opção. Carta de vinhos fraca, optou-se pela cerveja.
O serviço é que deixou muito a desejar. Muito demorado, pouco simpático, sem nenhuma emoção, uma tristeza que alastrou a outras mesas, como facilmente se percebia pela cara dos clientes. Esperemos que tenha sido um dia mau, pois uma cozinha tão boa e tão autêntica não merece uma traição destas.
Preço médio sem vinho 10€.
Restaurante Senhora da Lomba, Avenida dos Emigrantes 7, Pinhanços, Seia – 238 481 030
Poderia ser um típico restaurante de beira de estrada, mas acaba por ser mais que isso. Pela gastronomia cuidada que oferece e pelo bom serviço de vinhos.
Lugar amplo, com muita luz, que entra pelas grandes janelas, que deixam espreitar as vistas para as encostas da serra. Mesas bonitas e bem postas, com guardanapos de pano e cadeiras confortáveis.
Convém dizer que a experiência que tive neste restaurante foi muito influenciada por uma noite especial entre amigos, filhos da terra e habituées do lugar, pelo que a avaliação do lugar terá sempre de ser condicionada por esse facto. Mas os enchidos das entradas e o arroz de pato que se seguiu não deixam dúvidas que estamos perante boa mesa.
Nos vinhos, apesar do jantar ter sido em modo bring your own bottle (onde se beberam coisas muito interessantes do Dão, diga-se de passagem), deu para ver, pelo serviço, que há respeito pela bebida.
É lugar que justifica uma visita em passagem por aquelas bandas, pois come-se e bebe-se bem. É preciso mais alguma razão?
Preço médio sem vinho, 12,5€.
Restaurante Paragem Serradalto, Rua 1º de Maio 15, Manteigas – 275 981 151
Vamos agora até Manteigas, onde se respira fundo o ar puro da Serra da Estrela. É a partir daqui que a subida à Torre é mais bonita, com 20km de puro deleite, mas cuidado, com mau tempo este caminho pode tornar-se um pesadelo.
Entramos neste Serradalto, que também é residencial, para saciar a fome numa noite amena de Agosto. É um lugar simples, sem pretensões, onde vale a pena ir ao almoço para desfrutar na plenitude da excelente vista para o Vale do Zêzere. A cozinha mistura alguma influência serrana com pratos mais simples e consensuais.
Nos comes. A Espetada de Camarão impressiona pelo aspecto, com bichos grandes e bem grelhados. Chega sem acompanhamento, pelo que o ideal é pedir como entrada e partilhar. A especialidade da casa é o Bife na Pedra, mas a escolha recaiu no Bacalhau com Broa e Queijo da Serra, que vinha acompanhado por uns grelos salteados com alho que estavam bons demais. Aliás, uma característica transversal a todos os locais desta lista é a forma eximia como trabalham os legumes. Sempre bem temperados, nem a mais nem a menos, com os tempos de cozedura no ponto certo, uma maravilha.
A carta de vinhos é curta mas eficiente e o mais importante, a preços justos. Empurrou-se com um Quinta dos Termos Branco (8€), que cumpriu em pleno a sua função.
O serviço podia ser mais simpático, mas não é isso que impede de termos o lugar em conta.preço médio sem vinho 15€
Restaurante O Nevão, Rua da Barreira, Sabugueiro, Seia – 238 311 432
Depois de um retemperador mergulho no Vale do Rossim (que bem que soube), avançamos por entre paisagens de grande beleza até à aldeia mais alta de Portugal. A 1200mts de altitude encontramos a aldeia do Sabugueiro, um lugar incontornável nos percursos turísticos pela Serra da Estrela.
O que não contávamos era com a excelência da gastronomia que encontrámos no Nevão. Lugar simples, com aspecto de café, mesas e cadeiras em madeira, serviço simpático e atencioso, preços muito justos.
A oferta da cozinha não podia ser mais típica e autêntica. Feijoada à Nevão, Torresmos à Pastor, Cabrito Assado, Vitela Estufada, Truta à Nevão, Chanfana à Sabugueiro, entre outros pratos do dia.
Entrámos com os Torresmos à Pastor, onde uma entremeada assada fininha brilhava em conjunto com enchidos, batata e couve lombarda (de novo a excelência dos legumes) e seguimos com umas Migas de Bacalhau com Broa de bradar aos céus. Conjunto cremoso, perfeito na textura e no sabor. Pelo meio, as lascas de bacalhaus eram adornadas pelo conforto dos pedaços de broa. Um dos melhores pratos de toda esta lista, para definitivamente, uma das melhores refeições.
Para subir a fasquia apareceu um Somontes Tinto 2006 (9€), que além de ter feito grande casamento, mostrou-se com uma classe e elegância que só visto (bebido neste caso). Bendita gente que faz vinhos assim.
Mais uma razão, e esta muito séria, para visitar a simpática aldeia do Sabugueiro. Obrigatório.
Preço médio sem vinho, 10€
Rotas e Sabores Regionais, Rua Bernardo Marcos Leitão, Manteigas – 275 982 241
Termino esta lista, que se pretende dinâmica, por hoje, não com mais uma sugestão de onde comer, mas com uma casa de produtos regionais de excelência, que nas grandes urbes passou a chamar-se de gourmet.
Merece ser conhecida, no centro de Manteigas, a loja da Carolina Lima Vaz, que nos recebe com um sorriso, para logo de seguida nos convidar a provar os famosos queijos da serra. São muitos e bons, pelo que é tarefa hercúlea conseguir deixar o lugar sem gastar dinheiro. Há muito mais que queijo e nem as encantadoras pantufas da serra quiseram faltar. É conferir.